domingo, 7 de junho de 2015

tinta despedaçada

Rasguei-te as folhas imersas em palavras impregnadas de tinta de ti.

Houvesse livro de cabeceira mais lido, mais revisto, mais posto de lado... Mas não havia. Todos os outros livros tinham sido lidos uma vez (ou vezes sem conta, que de nada isso interessa) e colocados na prateleira por ordem de tamanho (como sempre faço).

Confesso que este li, reli, soube trechos de cor. Relembrei passagens de olhos fechados e sorriso aberto. 
Evitava sempre chegar ao último capítulo, de tão indefinido e aberto que estava. 
Alguém apagara as últimas linhas, as respostas que se deviam ao leitor e às personagens em jogo. Cabia-me a mim decidir o final suspenso numa borratada qualquer.

Larguei o livro milhentas vezes e milhentas vezes o voltei a ler, na esperança da ultima página aparecer traçada pela tinta do vento ou de algum elemento a que desse vontade de o acabar.

Li então de olhos fechados, passando os dedos pelas páginas e palavras e histórias e diálogos que sabia de cor mesmo não os querendo lembrar.
Com palavras impressas na memória de quem não quer esquecer.

Mas o esquecimento é coisa humana e é por isso que existem as palavras carregadas a tinta em folha de papel em branco. 

E fim só é fim com um ponto final,
naquele pedaço de tinta com 
a doçura do escritor
a atenuar 
a ignorância do leitor. 

Senti o sol desaparecer e a última página a chegar... E rasguei-a em pedaços tão pequenos que qualquer um deles seria o ponto final que faltava.

E então arrumei-te. 
Ordenado por tamanho,
como todos os outros
(como sempre faço).


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

trono de pedra

Não consigo dormir. 
Dou voltas e voltas à cama a cada mil que dou na cabeça. 
Ou só no incómodo que sinto.

Tirei a roupa e fiquei nua,

só a minha pele contra os lençóis. 

E mesmo assim sinto incómodo nesta pele que quero arrancar num ataque contido de raiva contra algo que é meu e que não quer ser. 
Que não sinto meu.

Há qualquer coisa que não está bem aqui.

Eu.
Eu não estou bem aqui.

Sinto-me intrusa de mim, um incómodo de mim em mim.

Não sei quem sou eu
ou se eu sou um estranho corpo despido de mim.
Não sei onde estou
ou se eu estou perdida num outro sítio desconhecido sem mim.
Ou cheia de mim.

Não quero dormir.

O estranho espaço em mim sem mim está cheio de monstros e terror sem fim. 
Raro é o sono passado longe desse espaço escuro e doentio. 
Rara é a noite realmente descansada. 
Raro é o tempo em mim. 
Raros são os momentos comigo encontrada em mim e não perdida de mim.

O tempo não pára, as horas passam... 
O espaço negro em mim começa a tomar conta de uma eu encontrada num vestígio de mim, 
fraca, 
mal dormida, 
sem força para lutar contra um eu tão monstruoso. 

Sei que vou dormir, 
que vou sonhar 
e que vou acordar ainda mais diminuída de mim.

Eu contra mim. 

A procura de um eu que sei existir e que não encontro. 
O arrancar de um incómodo na pele impregnada de mim.

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Acordei da noite numa queda sem fim. Abrupto final de um sonho qualquer que nem faço por lembrar.

Não interessa.

Dei por mim deitada no chão frio de pedra.

Desconfortável.

Levantei os olhos do chão e vi.

O incómodo fora-se, a pele não doía e o batimento acelerado calara-se. 
Não, 
não se acalmara. 
Calara-se.

Senti-me novamente eu, nua em mim sem espaço de outra eu que não eu mesma.

Sem incómodos a rasgar-me a pele, subi ao trono que me pertencia.

Afinal era daí que caíra durante o sonho que não queria lembrar.

Percorri o meu reino do alto da magnitude que me pertencia.

Vazio. Finalmente o vazio.
Porque tudo o que me pertence de nada visível ou material é feito. 
Porque tudo o que me pertence é de si próprio e não de mim.
E porque todo este vazio existe para me lembrar o que ainda falta conquistar.


sábado, 31 de janeiro de 2015

sem rede

Sonhei uma noite destas contigo. 
De cima caíam gotas cheias de mim. 

Passeava numa falésia em pequenos passos, com medo de cair e com a certeza que o queria fazer. 
Percorri-a uma vez sem olhar para baixo, sem querer saber o que me atormentava. Voltei a percorre-la a olhar os meus pés, que se encarceravam em mim, lentamente sob o meu olhar.
E então olhei para o fundo da falésia e não consegui andar. 
Era tão assustador e tão tentador. 

Sabia que ia cair se a voltasse a percorrer 
mas não resisti, 

queria ver o fundo, 
queria saber como ia ser,
queria largar o mundo 
e libertar-me de mim. 

Lembro-me de andar para trás, de me afastar da falésia.

Lembro-me de olhar para os restos de mim a cair do céu fortemente, 
a impedir-me de ir, 
a manter-me em mim. 

Lembro-me de começar a correr, do ímpeto cada vez mais perto. 

Libertei-me de mim e voei. 

Vi o fundo mais perto, de uma beleza atroz cada vez mais nítida. 

Sei que não me fechei em mim. 
Sei que queria sentir em pleno o impacto. 

Não consegui. 

Acordei sem saber.


segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

desconcerto verbal

Deixa-me gostar de ti aos pedacinhos, como quem não quer a coisa. E não quero, sabes bem. Mas deixa-me ir devagarinho e não faças perguntas. Não me apresses os passos mas não mos atabalhoes com atacadores atados. É que eu estou tão bem assim, sem destino onde ir, na certeza do meu caminho. Como estava... Ou talvez não.
Apareceste tu, uma reviravolta de cambalhota e meia, confiante da tua razão mas a querer saber a minha.

Eu sei que dou passos maiores que eu, que volto atrás muitas vezes antes de dar um tão grande como o anterior. Mas isso é porque quero e não quero e nem sei como querer. 

Parece tão errado querer, querer-te mesmo em passos pequeninos como eu dou, meio a sério meio a medo.

E tu não sabes, ou sabes mas não queres saber, que eu tenho muito medo de gostar e de querer e de precisar. 
Verbos conjugados para pessoas assustam-me. E se não ha uma conjugação verbal para mim?! Fico ali de verbo conjugado no ar, preso pelo meu respirar expectante e depois vem o vazio de volta e eu tenho de guardar o verbo conjugado e amachucado. 

Como o papel que não volta a estar igual.

Parece tão errado apaixonar-me, porque a paixão implica loucura, descontrolo, infinitos de tempos finitos. E se eu me descontrolo e se deslizo pelo gelo por mim só e embato de frente contra uma parede?

Parece tão errado deixar-te ir, não fincar o pé e lutar pelo que quero. E se eu fincar o pé e tu te deixares ir por alguma brisa mais forte?

Parece tudo tão errado quanto certo e eu quero e não quero tudo.